Emilie Snethlage: uma vida dedicada à ornitologia

Em meados do século XIX as mulheres na Europa e nos Estados Unidos organizaram movimentos feministas, reivindicando direitos básicos e uma maior participação na vida social e política. Desde então, o movimento passou a crescer, não sem tribulações e desafios constantes, propiciando a participação das mulheres em ambientes antes quase que exclusivamente ocupados por homens. Na ciência, prática considerada “para homens”, não foi diferente. Pouco a pouco as mulheres ocuparam lugar de destaque e prestígio no meio acadêmico. Um dos exemplos mais conhecidos é Marie Sklodowska Curie (1867- 1934), física polonesa, vencedora do Prêmio Nobel em duas ocasiões (1903 e 1911) e Rosalind Franklin (1920-1958), pioneira na biologia molecular que desvendou a forma helicoidal do DNA.

No Brasil, as ideias advindas do movimento feminista chegaram da Europa ainda no século XIX. Movimentos de menor envergadura surgiram em alguns lugares, em especial no Rio de Janeiro, propiciando algumas oportunidades para as mulheres, que ainda viviam sob a sombra dos homens.

Uma expoente foi Bertha Lutz (1894-1976), notável bióloga, educadora e líder nos movimentos pelo direito do voto das mulheres no Brasil. Mas, antes do movimento feminista ganhar força no Brasil, uma mulher extraordinária deixou sua marca e seu legado na ciência brasileira.

Em 13 de abril de 1868, nascia Henriette Mathilde Maria Elizabeth Emilie Snethlage, na cidade de Kraatz, na província prussiana de Brandenburg, Alemanha. Era filha do Reverendo Emil Snethlage e de sua esposa Elizabeth Rosenfeld. A segunda de quatro filhos, Emilie já demonstrava na infância paixão pela natureza, realizando observações e anotações sobre as plantas e os pássaros da região.

Em 1904 obteve o grau de Doutora em Ciências na Universidade de Freiburg, com uma tese voltada para a inserção muscular e a origem da musculatura em artrópodes. Já em 1905 passou a atuar como assistente de zoologia no Museu de Berlim, sob a coordenação do ornitólogo Anton Reichenow (1847-1941). No mesmo ano, Emilie embarcou para o Brasil, para atuar como assistente de zoologia no Museu Paraense, junto ao diretor Emílio Goeldi. Nos primeiros anos de sua chegada, ela já realizava expedições e dedicou-se ao estudo de peixes amazônicos, a partir do qual foram descritas espécies novas, advindas dos rios Xingu e Purus. Foi incumbida, também, de um trabalho de grandes proporções, no qual passaria a se dedicar pelos próximos anos, o “Catálogo das Aves Amazônicas”.

Emilie realizou em 1909, já na casa dos 40 anos de idade, uma das maiores expedições de sua carreira, a audaciosa travessia dos rios Xingu e Tapajós acompanhada apenas por indígenas locais. A expedição realizada em 1909 foi de grande valor para a história natural amazônica, com a coleta de diversos exemplares de aves, mamíferos, répteis, peixes, além de expressivas amostras de plantas. Além disso, as observações etnográficas sobre os indígenas Chipaya e Curuahé renderam uma publicação sobre o vocabulário por eles utilizado.

Sua grande obra, o “Catálogo das Aves Amazônicas", foi publicada em 1914 em um volume de 530 páginas. No início do Catálogo haviam observações sobre a Amazônia e um histórico das explorações ornitológicas, desde Alexander Von Humboldt, passando por Spix e Goeldi, chegando na própria Snethlage. Na maior seção, denominada parte sistemática, as espécies e subespécies são listadas nas respectivas ordens e famílias, acompanhadas de chaves de identificação, descrição dos caracteres morfológicos marcantes, distribuição geográfica, além da indicação da inexistência de amostra no acervo do Museu Goeldi. Esta obra magnífica reuniu os dados de coletas dos acervos e da bibliografia científica, algo inédito para uma região imensa, tão pouco conhecida e explorada como a Amazônia.

Em 1914, com a morte do então diretor Jacques Huber (1867- 1914), Emilie Snethlage tornou-se diretora do Museu Paraense, sendo a primeira mulher a dirigir uma instituição científica na América do Sul.

Com o início da Primeira Guerra Mundial, a alemã foi afastada de suas atividades no Museu e só pôde retomá-las em 1919. Já em 1922, Emilie foi transferida para o Museu Nacional do Rio de Janeiro e passou a atuar como naturalista viajante. Prosseguiu com suas expedições e estudos, visitou diversos estados brasileiros, como o Maranhão em 1923-1924, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia em 1925-1926, Goiás em 1927, e a Serra do Caparaó, Minas Gerais, e o rio Madeira em 1929. Desde 1909 Emilie lutava contra a malária, tendo, em 25 de novembro de 1929, falecido em decorrência de um ataque cardíaco durante uma expedição realizada ao rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia.

A importância de Snethlage para a ornitologia brasileira é imensa, e a ela foi dedicada a obra “Ornitologia Brasileira, uma Introdução”, do renomado ornitólogo Helmut Sick (1910-1991). Ao todo, Emilie Snethlage descreveu aproximadamente 60 novas espécies e subespécies de aves.

Emília Snethlage (em pé) no Museu Paraense, em Belém, Pará, no início do século XX.
Fonte: acervo do Fundo Emília Snethlage, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.

Espécies descritas:

60 espécies e subespécies novas

Picumnus limae (Snethlage, 1924)

Hemitriccus griseipectus (Snethlage, 1907)

Piculus paraensis (Snethlage, 1907)

Sclerurus cearensis (Snethlage, 1924)

Hylopezus paraensis (Snethlage, 1910)

Subespécies:

Pteroglossus bitorquatus reichenowi (Snethlage, 1907)

Euchrepomis spodioptila meridionalis (Snethlage, 1925)

Xiphocolaptes falcirostris franciscanus (Snethlage, 1927)

Conopias trivirgatus berlepschi (Snethlage, 1914)

Neomorphus geoffroyi dulcis (Snethlage, 1927)

Rhegmatorhina melanosticta purusiana (Snethlage, 1908)

Momotus momota cametensis (Snethlage, 1912)

Thamnomanes ardesiacus obidensis (Snethlage, 1914)

Pipra fasciicauda purusiana (Snethlage, 1907)

Piaya cayana obscura (Snethlage, 1908)

Thamnophilus caerulescens ochraceiventer (Snethlage, 1928)

Willisornis vidua nigrigula (Snethlage, 1914)

Espécies em homenagem:

Snethlage´s Antpitta Hylopezus paraensis (Snethlage, 1910)

Black Breasted Antpitta Conopophaga snethlageae (von Berlepsch, 1912)

Snethlage's Tody-Tyrant Hemitriccus minor (Snethlage, 1907)



Este boletim foi escrito com base nos artigos disponíveis nos links: https://www.museu-goeldi.br/assuntos/o-museu/historia-1/Emilia-Snethlage e

https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/SS9qKtZDJbDscX7M8vZ4Ktm/?lang=pt


Autor: Leonardo Silva Marujo (bolsista de Extensão PBEXT, orientado pelo prof. João Renato Stehmann).


Este texto corresponde ao Boletim CCT Ciência nº 22, originalmente publicado em 2023 no site oficial do CCT Ciência: https://www2.icb.ufmg.br/cct/cctciencia/CCTCiencia-22.pdf


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